Biografia e vida humana
- Psicº. Alan Müller
- 29 de nov. de 2018
- 4 min de leitura

Tenho focado boa parte de meus estudos na chamada Escola de Madri, formada por pensadores espanhóis do século XX. Dentre estes, destaca-se a influência de Ortega y Gasset, precursor deste movimento. Muitos chamam este grupo seleto de pensadores pela alcunha da “Escola existencialista espanhola”. Tenho minhas reservas quanto a isto, principalmente diante das críticas de Ortega para com Heidegger e Sartre. Entretanto, existem pontos em comum, principalmente no que tange a perspectiva fenomenológica da realidade. O artigo que ora proponho escrever desenrola-se diante de uma afirmação escrita por Ortega em 1951 no texto Meio Século de Filosofia. A afirmação em tela é: “A biografia é o superlativo da vida”.
A frase por si só é impactante, mas desvela toda sua importância quando concatenada com a obra de Ortega, bem como de seu discípulo mais dileto, Julián Marías. Ora, a biografia trata da narrativa da construção interna de uma pessoa. Tentar compreender a biografia alheia, para Ortega, é buscar examinar aquilo que há de maior importância na vida do biografado, ou seja, qual era sua real vocação. Esta vocação por vezes é incognoscível ao próprio sujeito. Esta mesma incompreensão ocorre em nossa própria vida pessoal.
Para Ortega a realidade se dá por meio desta vida pessoal, ela é o nexo radical que dá origem a todas as demais perguntas e inquietações humanas. Assim, compreender sua biografia é compreender sua própria realidade. Esta biografia, ou esta “pessoalidade” é perpassada transversalmente pelas mais variadas circunstâncias, sejam elas biológicas, econômicas, psicológicas, históricas ou culturais. Logo, Ortega se afasta de qualquer reducionismo, consubstanciando na vida humana o nexo de relação de todas estas particularidades da realidade. A vida desvela-se neste drama pessoal que ocorre em atos. Por isso, a biografia seria o superlativo da vida, pois a biografia pessoal é a história desta realidade, é a imagem pessoal que temos do mundo e de nós mesmos. O homem para Ortega não é uma coisa, um ser. Para ele, este tipo de nomenclatura servia outrora aos gregos que questionavam o que seria a realidade. Para o homem do século XX importa saber quem é o homem. O homem é um quem, uma pessoa, inserida em sua própria circunstância repleta de singularidades. Para além da natureza biológica o homem possui uma natureza biográfica.
A mais famosa frase de Ortega, “Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela não salvo a mim” remete a este pensamento ora exposto. Salvar a circunstância é justamente circunstancializar esta vida pessoal, é questionar minha própria biografia e compreendê-la. Este mote remete ao Conhece-te a ti mesmo dos gregos. Ao questionar às variáveis que constituem o meu eu, passo a salvá-las, resgatá-las. É um resgate de si mesmo. Daí que provêm certas psicoterapias que visam à análise existencial, ou seja, visam essa reflexão da construção deste eu e sua apropriação.
Ocorre que, além das sensações e da corporeidade, o homem possui história, uma história de si mesmo. No século XX nomeavam a esta camada cognitiva humana de espírito, a qual por ora é referida como subjetividade. Trata-se justamente deste ato motivacional humano de fluidez significativa na sua relação com o mundo. O homem dá sentido às coisas a todo o momento. Impinge sua interpretação sobre os fatos que lhes são apresentados. Magritte buscava, em certo sentido, retratar este perspectivismo em suas obras, pois sempre há um filtro pessoal na relação intencional do eu com a circunstância. Como dissera Ortega, o homem tem paisagem e não ambiente, pois esta é passível de ser repintada. Olhamos a materialidade das coisas, mas por cima desta imprimimos certas impressões pessoais. O mesmo se dá em nossa biografia.

"Magritte buscava, em certo sentido, retratar este perspectivismo em suas obras"
A imagem da vida humana se descortina nesta autoimagem que possuímos de nós mesmos. Na maioria das vezes a desconhecemos e caímos em certos comportamentos inautênticos. Ortega referia-se a este modo de existência como a do “homem-massa”, aquele que não reflete sobre si mesmo. Este é guiado pelas circunstâncias. Esta preocupação com a história, com o contar, com a narrativa da imagem da vida humana parece nos acompanhar desde os primórdios. Se voltarmos a Caverna de Altamira, na Espanha, encontraremos os registros rupestres de cenas de cassadas ou de cerimônias ritualísticas. As mais diversas culturas humanas estão repletas de contos e mitos sobre os mais diversos temas. O drama nos encanta. O homem se interessa pelo drama pois sua própria vida o é. O antropólogo Joseph Campbell fizera denso estudo sobre a repetição de certos arcos narrativos nos mitos das mais diversas e diferentes culturas, estudo este que culminou na obra O Herói de Mil Faces, visto que a jornada do personagem heroico tende a se repetir em sua essência, alterando-se apenas aspectos superficiais dos mitos. Ou seja, o essencial da jornada era universal a todos os homens, pois remetia a jornada interior de viver sua vida. Nesta jornada cada homem é seu próprio protagonista.
Não por coincidência, a literatura tem sido uma ferramenta de atualização do eu de grande desenvoltura no decorrer dos séculos. É por meio do encontro com outros dramas que permitimos a atualização de nosso eu. O encontro com o outro insere a dúvida do que sou e que, por sua vez, permite o olhar para si mesmo, para esta biografia que venho escrevendo de mim mesmo. É por meio desta leitura do outro que consigo compreender o mundo por outras perspectivas, ampliando minha capacidade de colocar-me no lugar do outro. Reconheço as potencialidades universais humanas na perspectiva que aquele drama poderia também desenrolar-se em minha própria vida. Ou seja, a educação da imaginação possibilita uma maior clareza na construção biográfica do meu próprio eu.
Uma vida pobre de imaginação pode remeter a uma existência meramente circunstancial. Refletir e "escrever" sua biografia é a arte do viver. É um filosofar pela experiência. Ou como diria Ortega, “viver é filosofar com os pés”.
Autor: Alan é Psicólogo (CRP-12/15759), atuando com psicologia clínica na cidade de Brusque - SC; Além disto é Escritor, Mestrando em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduado em Psicologia pela UNIFEBE, com ênfase em Prevenção e Promoção de Saúde, e graduado em História pela Universidade Paulista. Membro ativo do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno) da UFPR.
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